De Sandra para Enigma, da Pop para “New age of dance music”
Antes de mais, é importante referir o trajecto anterior de Michael Cretu face ao projecto Enigma. Este compositor, para além do trabalho a solo, na década de 80 integrava o grupo Pop, Sandra, nome homónimo da vocalista Sandra Cretu, ex-esposa de Michael Cretu. Desse período, destacaram-se vários singles, nomeadamente: Maria Magadalena, Heaven Can Wait, In The Heat of Night, Stop for a minute. Em 1990, num registo totalmente diferente, Michael Cretu lançava MCMXC a.D., o primeiro álbum de Enigma. E nesse Álbum, um novo mundo se revelava. Os opostos aparentemente intocáveis, o religioso e o erótico, abraçam-se e dançam, encantados pela flauta de pã, esta por sua vez, acompanhada de uma batida electrónica. As fronteiras espacio-temporais esbatem-se dando origem a uma atmosfera mística. A própria estrutura musical não é sequer linear: a música inicia-se com um sample de canto gregoriano, concretamente o tema Procedamus in Pace!, é introduzida uma batida electrónica, o sample anterior é retomado. De seguida, ouvimos uma flauta de pã e posteriormente surge o refrão com uma voz feminina, apelando por Sade, intercalada pelo canto gregoriano anteriormente referido. Não é isto um trabalho de Alquimista? De alguém que isoladamente, no seu estúdio, procede a uma laboriosa operação de ligações e cortes que não exclui do fim instrumental a própria subjectividade? O que levou este compositor, após ter produzido vários Hit-Singles na Pop, a criar este novo conceito musical, “New Age of Dance Music”, como o próprio refere?Numa entrevista, um apresentador, num tom tipicamente televisivo, pergunta a Michael Cretu qual o fundamento do seu projecto musical Enigma. Cretu responde: “Primeiramente, Enigma é o meu coração e alma”. Nessa resposta, encontramos a fórmula Jungiana de matéria e psique, onde a experiência material não existe isolada da experiência espiritual. Trata-se na verdade da essência da experiência do Alquimista. Tal como nos diz Sédillot (2002: 33), “ele entrega-se totalmente à sua obra e, à imagem das substâncias minerais de que dispões, sofre, morre e renasce”. Cretu avança na entrevista que o seu objectivo era criar um estilo musical que até então não existia, impensável de poder ser comprado, uma vez que é composto de elementos que isoladamente jamais se encontrariam: cantos gregorianos, batidas electrónicas, instrumentos orientais, entre outros. O compositor refere ainda que o conteúdo da sua música, provém da extracção filosófica do nome Enigma, que vem do Grego e significa mistério.
Rivers of Believe, sobre os mistérios da Água e do Inconsciente.
A dado momento, surge das águas uma personagem feminina segurando firmemente uma espada. De seguida, observamos um cavaleiro ostentando firmemente uma outra espada, exibindo-a majestosamente à Terra, ao Mar e ao Céu. Sob um olhar menos atento, diríamos que assistimos a uma estrutura visual não narrativa, de ligações díspares. Contudo essas imagens fazem parte de uma memória de ordem colectiva. Na linha do pensamento de Jung estamos perante a presença evidente de arquétipos, essas imagens primordiais “onde a humanidade sempre buscou os seus deuses e demónios e todas as ideias, suas mais fortes e poderosas ideias, sem as quais o ser humano deixa de ser humano” (Jung, 1978: 58-59). Não é ao acaso que vemos duas personagens segurando uma espada. Essas imagens não são senão a referência aos arcanos menores do Tarot, a rainha e o rei de espadas. Fazemos a referência ao Tarot, longe de querer entrar numa via esotérica, no sentido em que “ as imagens das cartas «falam» profundamente à maior parte dos utilizadores, e em parte, ainda, porque proporcionaram leituras extraordinariamente claras e relevantes” (Barret, 1996: 8). Vejam-se as imagens abaixo:
A presença da espada, apoiando-nos no seio do simbolismo, representa essencialmente o auto-controlo, firmeza e determinação. Na via do Tarot, “o naipe de espadas está associado à mente, à actividade e à capacidade de decidir e ao elemento ar” (ibid.: 42). Seria ao acaso que em videoclipes como Ameno de Era, a espada fosse um elemento central? Se olharmos atentamente as imagens abaixo, verificamos no rosto da personagem as premissas anteriores: a sua firmeza e determinação no olhar capturam de alguma forma o espectador, imprimindo em simultâneo uma marca imemorial de impessoalidade.
Como acabamos de ver, no caos da (pós)modernidade, não cessamos de recorrer a essas imagens primordiais, que segundo Jung (1978: 58) “são simultaneamente sentimento e pensamento”. Da mesma maneira que encontramos referências a essas imagens em Enigma, perguntamos se seria ao acaso que, numa via não menos distante, encontramos em Era referências inesgotáveis ao imaginário da idade média?
Conclusão
A música de Enigma comprova-nos de como é necessário ir à procura das sementes sagradas dos antigos, para que nos dias de hoje volte a germinar no espírito, com toda a intensidade, o seu auto-movimento. Numa palavra, o elã vital. Como nos dizia Tarkovski (2002: 247) “é preciso encontrar um modo de fazer com que as pessoas se encontrem umas com as outras. Este é o dever sagrado da humanidade em relação ao seu próprio futuro e o dever pessoal de cada indivíduo”. As palavras de Tarkovski remetem-nos para um devir-Alquimista do homem. Como poderíamos esquecer a marca desse mágico primitivo, quando ele nunca esteve tão presente como hoje? Como acabamos de ver trata-se de pensar as micro percepções que escapam a um olhar macro sociológico. A música de Enigma é ela própria uma forma de pensamento e uma mediação entre os homens e o mundo numa viagem pela fé. Dessa forma, Enigma tem um sentido religioso (o dever sagrado que Tarkovski falava), mas ausente de cânones religiosos e dicotomias entre religiões, pois nele contém um ricochete de várias religiões. No fundo, Enigma é busca de si mesmo (individuação), a busca de um tempo perdido, necessário ao espírito daqueles que atravessam a saturação e nebulosidade do mundo (pós)moderno. Sem esse “tempo perdido” e imaginário de outrora, o ser reduz-se a um poço egótico ausente de sonhos e aspirações.Vitor Costeira
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