quarta-feira, 25 de maio de 2011

Sobre as Micro-Percepções

Em experiência e Pobreza, Walter Benjamim escrevia: «Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?» Eu pergunto-me: «Que jovens, hoje, têm o prazer de contemplar imagens tão cheias de nada, como uma princesa que, desodecendo às palavras do rei, foge das muralhas do castelo para estar com o seu amado?.»

terça-feira, 24 de maio de 2011

Imagem e Pensamento: A idade Média

Imagem é Pensamento. Se algum autor conferiu como nunca à imagem a capacidade de expressar pensamento, esse autor foi Gilles Deleuze. Ao olharmos atentamente esta ilustração do séc. XVI, podíamos rapidamente dispensar todos os manuais de história sobre a idade média. Aqui encontra-se o retrato religioso, sociológico e imaginário da era medieval. Vejam no topo o imagenciamento canónico da religião. Os corpos ascéticos, dimensionalmente superiores ao homem comum medieval, são a marca inolvidável da repressão secular da religião, e, não menos obstante, da consumação de um dualismo contínuo entre cima-baixo, divino-rastejante. Abaixo, encontramos a vida quotidiana do homem comum medieval: o amor cortês, resquissos da pulsão da homossexualidade, outrora condenada e posteriormente tolerada (Le Goff e Truong, 2005: 35); as idas às tabernas, esse lugar mágico, de encontros e celebração, necessário ao homem medieval. Por fim, no fundo, encontramos um grupo de corpos homem-animal que dançam livremente de mãos dadas, circundando o muro exterior do invólucro social e religioso medieval. E porque encontramos a presença de um corpo animal libertino nas margens da esteira social e religiosa? Segundo Le Goff e Truong, «desenvolve-se na idade média um erotismo muito peculiar: o erotismo animal». E, nesse sentido,  o corpo «solta-se nas margens. Portanto, também o erotismo ilustra a tensão que atravessa a idade média e combate uma ideia tenaz, a de uma época hostil ao corpo» (ibid.: 84-85)

Referências Bibliográficas
Le Goff, Jacques e Truong, Nicholas (2005), Uma História do Corpo na Idade Média,Lisboa, Teorema.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Enigma e a viagem pela fé

Introdução 
Actualmente, os Alquimistas já não usam alambiques nem bigornas, mas antes sintetizadores, mesas de montagem, câmaras digitais, entre outros. A relação mágica primitiva de outrora no momento em que o alquimista realizava a transmutação dos minerais em ouro, apesar de tudo, não cessou de existir, simplesmente comporta hoje outros objectos técnicos. E o laboratório, se é que deixou de ser laboratório, chama-se hoje de estúdio, onde um novo iniciado, no invólucro da sua solidão e de um tempo suspenso, vem ligar o que aparentemente estava desligado ou jamais se ligaria. O contributo da Alquimia no devir-histórico do Homem parece estar à beira de um profundo esquecimento no seio da pós-modernidade. Gaston Bachelard, em 1938, alertava para a importância da Alquimia face ao conhecimento científico: “A ciência moderna é por excelência inacabada, visto que parte de hipóteses consideradas suspeitas durante longo tempo e que permanecem sempre revogáveis. A cultura do alquimista revela-se, pelo contrário, (…) um pensamento claramente finalizado, que recebe confirmações psicológicas bem reveladoras da intimidade e da solidez dos seus símbolos ao longo de todo o ciclo experimental” (Sédillot, 33 cf Bachelard (1938) Formulation de l´espirit scientifique). Perante uma olhar mais desatento e céptico, é útil referirmos o exemplo de São Basílio que recomendava aos seus catecúmenos a leitura de textos de autores profanos antes de iniciarem o trilho pelo divino. Tal como nos diz Ruy Afonso da Costa Nunes, “para o cristão é vantajoso o conhecimento das ciências profanas, uma vez que para a alma o fruto essencial é a verdade, que numa comparação feliz, se envolve na folhagem que na árvore proporciona ao fruto um abrigo benfazejo. Assim, Moisés, antes de chegar à contemplação divina, exercitou-se nas ciências profanas, e o sábio Daniel da Babilónia instrui-se na ciência dos caldeuses, antes de iniciar o estudo das coisas divinas” (Nunes, 1978: 145). O projecto musical Enigma, criado por Michael Cretu, rico em simbolismo e repleto de referências religiosas, cortejado por sintetizadores e ritmos dançáveis; parece-nos carente de uma análise aprofundada que nos permita pensar a música como uma nova mediação entre o Homem e o mundo através da excursão pela fé. Nesse sentido, dada a extensa obra musical de Enigma, cingimo-nos a analisar o videoclipe do tema: Rivers of Believe que parece munir as características anteriormente referidas.

De Sandra para Enigma, da Pop para “New age of dance music”
Antes de mais, é importante referir o trajecto anterior de Michael Cretu face ao projecto Enigma. Este compositor, para além do trabalho a solo, na década de 80 integrava o grupo Pop, Sandra, nome homónimo da vocalista Sandra Cretu, ex-esposa de Michael Cretu. Desse período, destacaram-se vários singles, nomeadamente: Maria Magadalena, Heaven Can Wait, In The Heat of Night, Stop for a minute. Em 1990, num registo totalmente diferente, Michael Cretu lançava MCMXC a.D., o primeiro álbum de Enigma. E nesse Álbum, um novo mundo se revelava. Os opostos aparentemente intocáveis, o religioso e o erótico, abraçam-se e dançam, encantados pela flauta de pã, esta por sua vez, acompanhada de uma batida electrónica. As fronteiras espacio-temporais esbatem-se dando origem a uma atmosfera mística. A própria estrutura musical não é sequer linear: a música inicia-se com um sample de canto gregoriano, concretamente o tema Procedamus in Pace!, é introduzida uma batida electrónica, o sample anterior é retomado. De seguida, ouvimos uma flauta de pã e posteriormente surge o refrão com uma voz feminina, apelando por Sade, intercalada pelo canto gregoriano anteriormente referido. Não é isto um trabalho de Alquimista? De alguém que isoladamente, no seu estúdio, procede a uma laboriosa operação de ligações e cortes que não exclui do fim instrumental a própria subjectividade? O que levou este compositor, após ter produzido vários Hit-Singles na Pop, a criar este novo conceito musical, “New Age of Dance Music”, como o próprio refere?
Numa entrevista, um apresentador, num tom tipicamente televisivo, pergunta a Michael Cretu qual o fundamento do seu projecto musical Enigma. Cretu responde: “Primeiramente, Enigma é o meu coração e alma”. Nessa resposta, encontramos a fórmula Jungiana de matéria e psique, onde a experiência material não existe isolada da experiência espiritual. Trata-se na verdade da essência da experiência do Alquimista. Tal como nos diz Sédillot (2002: 33), “ele entrega-se totalmente à sua obra e, à imagem das substâncias minerais de que dispões, sofre, morre e renasce”. Cretu avança na entrevista que o seu objectivo era criar um estilo musical que até então não existia, impensável de poder ser comprado, uma vez que é composto de elementos que isoladamente jamais se encontrariam: cantos gregorianos, batidas electrónicas, instrumentos orientais, entre outros. O compositor refere ainda que o conteúdo da sua música, provém da extracção filosófica do nome Enigma, que vem do Grego e significa mistério.


Rivers of Believe, sobre os mistérios da Água e do Inconsciente.

Enigma não se trata de música religiosa (no sentido canónico), contém nele um ricochete de várias religiões. Em Rivers of Believe, tal como diria Deleuze, a nossa experiência psicológica de existir torna-se cada vez menos euclidiana. Quando assistimos ao videoclipe, rapidamente somos levados para um tempo não diegético. Como vamos ver, não se trata apenas de pensar o ritual iniciático da água nas várias religiões, é também uma viagem pela memória colectiva. No início, são nos apresentados alguns planos sobre as pirâmides do Egipto. Aos poucos, observamos fiéis mergulhando no rio Ganges na cidade de Benares, Índia. É certo que de forma geral se atribui à água o poder de purificar, contudo “a imersão no rio Ganges visa não só a purificação mas o contacto espiritual e físico com a divindade” (Civita, 1973: 181).
A dado momento, surge das águas uma personagem feminina segurando firmemente uma espada. De seguida, observamos um cavaleiro ostentando firmemente uma outra espada, exibindo-a majestosamente à Terra, ao Mar e ao Céu. Sob um olhar menos atento, diríamos que assistimos a uma estrutura visual não narrativa, de ligações díspares. Contudo essas imagens fazem parte de uma memória de ordem colectiva. Na linha do pensamento de Jung estamos perante a presença evidente de arquétipos, essas imagens primordiais “onde a humanidade sempre buscou os seus deuses e demónios e todas as ideias, suas mais fortes e poderosas ideias, sem as quais o ser humano deixa de ser humano” (Jung, 1978: 58-59). Não é ao acaso que vemos duas personagens segurando uma espada. Essas imagens não são senão a referência aos arcanos menores do Tarot, a rainha e o rei de espadas. Fazemos a referência ao Tarot, longe de querer entrar numa via esotérica, no sentido em que “ as imagens das cartas «falam» profundamente à maior parte dos utilizadores, e em parte, ainda, porque proporcionaram leituras extraordinariamente claras e relevantes” (Barret, 1996: 8). Vejam-se as imagens abaixo:
A presença da espada, apoiando-nos no seio do simbolismo, representa essencialmente o auto-controlo, firmeza e determinação. Na via do Tarot, “o naipe de espadas está associado à mente, à actividade e à capacidade de decidir e ao elemento ar” (ibid.: 42). Seria ao acaso que em videoclipes como Ameno de Era, a espada fosse um elemento central? Se olharmos atentamente as imagens abaixo, verificamos no rosto da personagem as premissas anteriores: a sua firmeza e determinação no olhar capturam de alguma forma o espectador, imprimindo em simultâneo uma marca imemorial de impessoalidade.
Como acabamos de ver, no caos da (pós)modernidade,  não cessamos de recorrer a essas imagens primordiais, que segundo Jung (1978: 58) “são simultaneamente sentimento e pensamento”. Da mesma maneira que encontramos referências a essas imagens em Enigma, perguntamos se seria ao acaso que, numa via não menos distante, encontramos em Era referências inesgotáveis ao imaginário da idade média?

Conclusão
A música de Enigma comprova-nos de como é necessário ir à procura das sementes sagradas dos antigos, para que nos dias de hoje volte a germinar no espírito, com toda a intensidade, o seu auto-movimento. Numa palavra, o elã vital. Como nos dizia Tarkovski (2002: 247) “é preciso encontrar um modo de fazer com que as pessoas se encontrem umas com as outras. Este é o dever sagrado da humanidade em relação ao seu próprio futuro e o dever pessoal de cada indivíduo”. As palavras de Tarkovski remetem-nos para um devir-Alquimista do homem. Como poderíamos esquecer a marca desse mágico primitivo, quando ele nunca esteve tão presente como hoje? Como acabamos de ver trata-se de pensar as micro percepções que escapam a um olhar macro sociológico. A música de Enigma é ela própria uma forma de pensamento e uma mediação entre os homens e o mundo numa viagem pela fé. Dessa forma, Enigma tem um sentido religioso (o dever sagrado que Tarkovski falava), mas ausente de cânones religiosos e dicotomias entre religiões, pois nele contém um ricochete de várias religiões. No fundo, Enigma é busca de si mesmo (individuação), a busca de um tempo perdido, necessário ao espírito daqueles que atravessam a saturação e nebulosidade do mundo (pós)moderno. Sem esse “tempo perdido” e imaginário de outrora, o ser reduz-se a um poço egótico ausente de sonhos e aspirações.

Vitor Costeira